“Considere agora os projetos de reurbanização das cidades: residências de renda média e alta que ocupam grande extensão do solo urbano, vários quarteirões antigos, com terrenos e ruas próprias para atender a essas ‘ilhas urbanas’, ‘cidades dentro da cidade’ e esse ‘novo conceito de vida urbana’, como dizem os anúncios sobre eles. Aqui, a prática é também demarcar o Território e deixar de fora das cercas as outras gangues. Antes, as cercas nem eram visíveis. Os guardas eram suficientes para garantir a fronteira. Nos últimos anos, contudo, as cercas tornaram-se concretas.”
O trecho acima foi retirado do livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, da jornalista e estudiosa do urbanismo Jane Jacobs, e foi escrito em 1961. Começavam os grandes projetos de reurbanização dos subúrbios norte-americanos, que só chegaram no Brasil tempos depois e são cada vez mais populares. Cada vez mais pessoas optam pelo isolamento e pelo território demarcado, para escapar da “violência”, do “medo”, em busca de “segurança”. Em tudo isso me lembra o filme “A vila”, de M. Night Shyamalan, que parece que passou batido da maioria das pessoas, mas que achei genial, porque ataca justamente esse ponto. Em vez de combater o medo do outro pela compreensão, a segurança é buscada no isolamento. E daí vem outra frase do mesmo livro: “E quem pode garantir que todos os milhares que por direito estão dentro do forte sejam confiáveis no escuro?”
É exatamente essa a história do filme. Um grupo de pessoas vive em uma aldeia cercada de um bosque que funciona como limite do território. Ninguém pode passar dali, sob pena de serem invadidos pelos seres do outro lado, vizinhos temíveis que ninguém sabe dizer se são humanos ou monstros. A comunidade vive muito bem, de forma auto-sustentável, sob dogmas e preceitos que passam de geração em geração. Mas a ordem só pode ser mantida pelo medo. E é claro que isso não dura muito tempo, porque – mais uma vez cito a Jane Jacobs – “O planejamento urbano ortodoxo está muito imbuído de concepções puritanas e utópicas acerca de como as pessoas devem gastar seu tempo livre, e, na área do planejamento, esse moralismo sobre a vida pessoal confunde-se com os conceitos referentes ao funcionamento das cidades”.
Essa visão autoritária sobre como deve ser a vida das pessoas, que muitas vezes vem aliada a utopias, já fizeram a minha cabeça. Eu sinceramente acreditava que as pessoas poderiam chegar a um acordo e agir todas da mesma forma, vivendo numa comunidade em paz e tranquilidade. Um pouco daquela visão das comunidades da década de 70, que pregavam o amor livre. Ninguém é de ninguém, todos compartilhamos o pão. Daí eu me lembro daquele outro filme que adoro, o sueco “Bem-vindos”, de Lukas Moodysson, que mostra uma comunidade hippie na década de 70. Tudo vai muito bem até que a mulher do próximo resolve dar pra todo mundo menos pro companheiro, que apesar de ser o cara mais cordato do universo também acaba se irritando.
Essas utopias são fundamentais numa fase da vida, mas na hora do vamos ver não funcionam. Hoje em dia acho que menos ainda, porque as pessoas estão ainda menos dispostas a deixar seu ego de lado em prol do bem comum. A terapia nos ensinou que temos de fazer valer nossos direitos e brigar por nossas vontades, e assim essas utopias realmente não passam mais pela cabeça de ninguém. E com o passar do tempo as pessoas passam a tentar se proteger do “outro”, unindo-se aos seus iguais em condomínios de luxo, de muros altos, portarias e crachás.
De uma forma ou de outra, nem todos serão cordatos por muito tempo. Nem todos estarão imbuídos do espírito que os reuniu ali. Os jovens usam drogas, independente da altura do muro, e isso nem sempre é um problema – mas às vezes é. Para compensar o confinamento, os pais se tornam mais permissivos e há sempre histórias de garotos de moto que atropelam crianças nas ruas tranqüilas dos condomínios.
Surgem novas proibições e em seguida novas formas de burlá-las. A superproteção gera pessoas mais inseguras. Da tentativa de evitar o sofrimento, surgem pessoas despreparadas para os problemas mais insignificantes. Tudo isso para dizer que a vida e a liberdade dão um jeito de se manifestar, se as regras feitas para manter a ordem são autoritárias e moralistas.
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