quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Limites

Trabalhei uma vez em um evento médico, organizado pela minha irmã, coordenando as recepcionistas das salas de aula. Resolvi ficar para ver uma aula de neurorradiologia e foi muito legal quando o médico mostrou uma figura didática de um cérebro humano, com as subdivisões por área funcional. Em azul claro, digamos, a memória. Em vermelho, a fala; em verde, as funções motoras. E por aí vai.
Aí, disse ele, é assim que a gente aprende na faculdade. Mas quando chega a hora de abrir uma cabeça no centro cirúrgico, o que a gente vê é bem diferente.
E então ele mostrou uma imagem do cérebro real, dentro de uma cabeça aberta, de um paciente na sala de cirurgia. Tudo vermelho. Sem nenhuma demarcação entre uma função e outra. É aí que entram os exames de imagem, ele explicou, para tentar prever que área pode ser afetada na cirurgia, e se pode haver alguma sequela inesperada.
Lembrei disso hoje, voando de São Paulo para João Pessoa. De cima, via cidades, morros, paisagens, pequenos bosques, plantações. Nenhum limite geográfico, nenhuma fronteira entre municípios. Sobrevoei uma meia dúzia de estados, pelo menos, e não vi linhas demarcatórias. Só uma continuidade das paisagens mais diversas, morros escuros, pedregosos, estradas de terra, concentrações de mata em vales de rio.
Que coisa, né? O mundo não é um mapa. As fronteiras geográficas talvez sejam ainda mais arbitrárias do que as regiões funcionais do cérebro.
Por isso é que sempre gostei mais de viajar do que de aulas de geografia.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

I need space

Hoje a depiladora me disse que foi à 25 de março e voltou correndo, sem comprar nada, porque não aguentou o tanto de gente.
Lembrei na hora de um episódio muito divertido da série Creature Comforts, do Nick Park, que sempre me faz morrer de rir. Essa série de animação mostra animais sendo "entrevistados" nas mais diversas situações. Nesse episódio, o entrevistador (que nunca aparece) está no zoológico de Londres e vai indo de jaula em jaula até chegar à onça.
É hilário: a onça tem sotaque brasileiro e gesticula como nós. Ela começa dizendo que é bem tratada, que tem comida, mas que precisa de espaço. Que lá é frio e apertado, apesar de ser tudo muito tecnológico.
Se a pobre onça morasse em São Paulo, talvez continuasse tendo a mesma sensação. Tem cada vez mais gente, as pessoas ocupam todos os espaços, moram em apartamentos cada vez menores. E vários lugares estão parecendo a 25 de março, uma muvuca insana. Eu não vou lá nem que me paguem, porque realmente me identifico muito com essa onça.
Outro dia passei cinco dias trabalhando no sítio, que na verdade é um terreno grandinho mas está longe de fazer jus ao nome. Mas tem uma casa, um pomar, um campo de futebol. Não sou de abraçar árvores, sou bem urbanoide, levei vários filmes, computador. Mas fazia muito tempo que não me sentia tão bem em um espaço. Porque podia ir de um cômodo para o outro e ficar em silêncio. E estar só.
Sempre achei difícil ficar longe das pessoas, morria de tédio nas férias, queria sempre estar fazendo coisas. Mas só hoje me dou conta de que, por morar em uma casa espaçosa, sem perceber desfrutava dessa solidão, do silêncio, fazendo o que mais gostava: ler. Hoje moro em um apartamento que não é pequeno para os padrões atuais. Mas ouço cada vizinho que entra e sai, gritos da louca do andar de cima, ônibus passando, o caminhão de lixo reciclável do Pão de Açúcar. Sinto também o cheiro do cigarro da zeladora enquanto ela lava a calçada.
E às vezes me lembro da onça, e falo para mim mesma "I need space"...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Conflito de gerações

Pesquisando para uma matéria sobre as diferentes gerações que estão no mercado de trabalho, encontrei artigos que explicam todo esse babado de Geração X, Y, Z e o escambau. Nunca antes na história deste capitalismo selvagem cinco gerações diferentes conviveram no mercado de trabalho.
De cara, já dá a impressão de que nunca os intervalos entre as gerações foram tão curtos. Hoje temos pessoas de 70 anos trabalhando com outras de 18, e não é de se espantar que as visões de mundo sejam tão diferentes. Uns nasceram pouco depois da invenção do raio X, enquanto outros foram esquadrinhados antes de nascer por pelo menos cinco exames de ultrassom e graças a isso seu quarto já era azul ou rosa meses antes do parto (acho que isso não mudou, que pena).
Muita gente reclama da Geração Y, que dizem ser mais comprometida com suas próprias vontades do que com as empresas. Bom, pelo menos alguém está começando a ficar esperto, né? Em um texto que traduzi recentemente, um consultor americano de RH dizia, sobre essa postura da Geração Y, que isso acontece porque um motivo muito simples: as empresas falharam com seus funcionários em momentos difíceis. "Hoje, as relações de trabalho são muito mais transacionais, e as pessoas se preocupam com sua carreira. Os funcionários querem desenvolver habilidades que os tornem 'portáteis'; ou seja, não vão se interessar para aprender aquilo que só seja aplicável à empresa para a qual trabalham."
Não é óbvio ululante?
Tenho pra mim que apesar de ter nascido na Geração X, já sou algo como um Y bemol. Tem certos sapos que nunca engoli...
Mas tudo isso me fez pensar mesmo em várias mulheres profissionais que conheço na casa dos 50 e poucos anos. Tenho amigas e pessoas com quem trabalho nessa faixa etária, e acho que são as que mais estão sofrendo com as mudanças.
Porque essa geração de mulheres foi a primeira no Brasil que teve a oportunidade de se dedicar à carreira. Foi a primeira geração que não teve a família como primeira opção. Para conseguirem sobreviver, tiveram de adotar as "táticas" do mundo em ação, o jeito masculino de se impor no grito se necessário. Às vezes autoritárias, às vezes complacentes, superprotetoras. Mães como provavelmente foram as mães delas. Admiro muito mesmo essas mulheres e agradeço o caminho que foi aberto para as gerações seguintes. Hoje, se temos escolha, devemos a essas guerreiras.
Mas antes que adoeçam, antes que se tornem mais uma estatística de doenças que antes só acometiam os homens, está na hora de procurar um respiro. De tentar entender que a nova geração, por mais individualista que possa parecer, tem muito de autopreservação a ensinar. E, vamos combinar, um mundo menos hierárquico não seria muito mais humano?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Felicidades e felicidades

Eu sou assim, digamos, uma Poliana sarcástica. Cínica não, que o cinismo abandonei junto com o ex-marido e o jornalismo. Mas sarcástica sim. E Poliana.
Ontem chegou minha encomenda da FNAC. Tinha um montão de pontos acumulados e quando é "de grátis", mesmo não sendo, você fica mais permissiva. Comprei dois CDs de novas mulheres cantoras adoráveis, brasileiras. Sim, eu sou dessas loucas que ainda compram CDs, e sim, essa mídia ainda existe.
Enfim.
Abri o pacote, e além dos dois CDs, três livros. Dois escritos por mulheres. Os dois com algo de felicidade no título. Um poliânico, um sarcástico. Reparei só quando vi os dois lado a lado, na mesa da cozinha. Um, o poliânico, é a nova coletânea de crônicas da Martha Medeiros, "Feliz por nada". Ela escreve aos domingos no Globo e gosto tanto dessas crônicas, são sempre tão equilibradas e bem resolvidas. Já peguei, comecei a ler, engatei duas ou três, quero ser do contra e não consigo, não é autoajuda, é simples, mas é profundo, me deixa contente, porque é pé no chão, não é rosa pink, é um rosa mais pálido e seco, é seda, não é tafetá. Gosto, isso, gosto e me identifico.
O outro é "Felicidade demais", de contos da canadense Alice Munro. Pelo título já se vê, poliânico não é. E o primeiro conto... já é uma paulada. Essas escritoras canadenses, viu? Que percepção. Margaret Atwood é outra, pelamor. É tão agudo, dói no fígado. São histórias de mulheres, pelo visto, personagens construídas com uma observação incomum, de alguém que sabe calçar os sapatos alheios. E você pensa: não é possível, isso não é inventado; ela deve ter conhecido alguém assim.
Eu, por exemplo, já me senti assim:
"Ela devia ter percebido, e naquele momento, mesmo que ele ainda estivesse longe de perceber. Ele estava ficando apaixonado.
Ficando. Sugeria um período de tempo, um deslizar para dentro. Mas se poderia pensar numa aceleração, um momento ou o segundo exato da queda. Agora Jon não está apaixonado por Edie. Tique. Agora está. Era impossível de conceber como provável ou possível, a não ser que se pense em termos de um tiro no meio da testa, uma calamidade súbita. O golpe fatal que aleija um homem, a brincadeira maldita que transforma olhos claros em pedras cegas."
Que felicidade se reconhecer em personagem de livro bom...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Eu quero sonhar com monstros

Passei o domingo com a minha afilhada de 5 anos, que está cada dia mais figura. A garota tem um mundo interno rico e peculiar como o do tio e padrinho dela, meu primo André. E uma tagarelice igual à da Dinda dela (eu, claro).
Deu de me contar pesadelos. Voltávamos do lançamento do livro "Canteiros", que tem arte da minha amiga designer Roberta Asse, publicado pela Ática. Lindo livro, com músicas, atividades e poemas, um encanto. Difícil ver uma editora investindo em obras assim por aqui, valeu, Claudinha, a gente adorou!
Íamos de carro, de Higienópolis para o Brooklin, o que, mesmo no domingo, é tempo para botar todo o papo em dia. No sonho dela tinha uma nuvem maligna no banheiro. Com o correr da contação, acabou que era tudo muito engraçado e foi ela mesma quem se deu conta. Chegamos à conclusão de que não era pesadelo coisa nenhuma e morremos de rir.
Ontem resolvi anotar nossa conversa, pra não perder o espírito da coisa, e continuei no papo pesadelo. Ao mesmo tempo, um conflito de agendas e uma apreensão, negocia daqui, muda a reunião, vou viajar para um cliente, o outro acha que estou à inteira disposição.
Conclusão: tenho um pesadelo à noite, acordo assustada achando que perdi o voo, estou atrasada, nem fiz a mala e já é hora de embarcar.
Pra que, inconsciente, me diz? Qual a finalidade desse pesadelo? Que coisa mais enfadonha! Estavam lá meu pai, minha mãe, meu quarto, tudo igual. Nenhuma parede escorrendo, meu pai não era um centauro, nenhum ser com duas boquinhas, como sugeriu minha afilhada na nossa conversa de domingo, propondo uma simetria que, para ela, seria "muito bonitinha".
Nem sei quanto tempo faz que não sonho com monstros, nem com nada que não seja estritamente real. Claro, às vezes junto duas pessoas que não têm nada a ver, mas não passa muito disso. Tenho bem poucos pesadelos, mas quando tenho são essas inutilidades da vida prática. Hello, inconsciente, eu jamais vou perder um voo pra João Pessoa!