terça-feira, 31 de julho de 2007

Alteridade

Acordo
Domingo

Os mesmos ruídos
Os cachorros da vizinha
O ônibus que sobe

Os mesmos cheiros
Do cigarro da zeladora
Da chuva da madrugada

A mesma luz cor de laranja
Do pouco sol
Na minha cortina

Tudo igual
Menos essa respiração ao meu lado
Provisória

Haicai

Do sarcasmo
Pinga amargura
E ácido clorídrico

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Sapatos, sapateiros

Nunca ouvi uma explicação satisfatória para a paixão das mulheres por sapatos. Eu mesma não sei explicar. Eu bem que gosto, não chego a Imelda Marcos mas gosto de variedade e conforto. Não sou do tipo tacones lejanos, nem a Carrie, que dava quatrocentos dólares num Manolo. Mas tenho um cuidado especial com os meus. Já teve tempos em que eu passava a manhã de sábado engraxando um por um. Levava todos para o quintal, ou a área de serviço, e primeiro engraxava os pretos. Daí lustrava. Então os marrons. Depois os coloridos.
Hoje não tenho mais tempo, também falta paciência. Então levo aos poucos numa sapataria perto de casa. O prazer é o mesmo, de conservar, de saber que posso usar de novo. Os meninos sapateiros trabalham com tanto gosto e o resultado é sempre tão bom que é melhor do que se eu tivesse feito. São rapazes novos, de 20 e poucos anos. São vários e todos dão a impressão de gostar do que fazem. É difícil ver isso. Talvez eles saibam porque as mulheres gostam tanto de sapatos.

domingo, 15 de julho de 2007

Fome de impossíveis

Um dos meus textos favoritos desse livrinho fofo, o "Tratado de Culinaria para Mujeres Tristes". Vai lá, em tradução minha:
Essa tendência a trair, a mentir e a ser totalmente franca. A esconder-se ou a mostrar-se demais. Esse cuidado de cuidar-se tanto para acabar contando sua história, sua verdade tintim por tintim, a um desconhecido. Essa vontade de fugir, de sair correndo quando alguém mostra que começa a conhecê-la, mesmo que não demonstre. Essa vertigem de ficar. Essa indomável sede de alguém e de não estar com ninguém. Essa fome de impossíveis. Como pensar com essa confusão contraditória? É verdade e mentira, está tudo bem e tudo mal, e não há saída.
Nada a fazer. Toma um copo de água.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Procurando a minha turma

Eu me vejo lá, num corredor super claro, no apartamento mais masculino que já fui. Numa sala, bateria e outros instrumentos musicais. Noutra, um autorama gigante. Cinco minutos antes, estava sentada no braço do sofá, olhando para a minha vizinha que conversava com dois meninos. Hic. Hic.
Olhei para um deles, 20 e poucos anos, e disse: “Estou com soluço. Faz esse soluço passar”. Assim, sem ponto de exclamação. Ele me pegou pela mão e me levou até o corredor, e ali me beijou meio afoito, mais dente que língua. Terapêutico. Passou na hora.
Meia hora antes estava no casamento do meu melhor amigo de faculdade. Segundo casamento, verdadeiro, maduro, felicidade que só. Muitos da antiga turma também estavam no segundo casamento. Meu ex inclusive. Não sabia se ia e de repente estava lá, com a nova mulher, dez anos mais nova que eu. Outros também, da mesma turma só de homens, tinham trocado as mulheres da turma por outras, a maioria mais novas.
É porque chega uma hora que eles param no tempo. E a gente envelhece sozinha. No que parou, vai encontrar a felicidade naquela que fomos, muitos anos antes. E nós nos vemos em corredores claros ou quartinhos escuros, sem nos atrever a perguntar a idade do outro.

A gente muda

Uma das minhas melhores aquisições buenosairinas foi um livrinho muito simpático intitulado "Tratado de Culinária para Mujeres Tristes". Voluminho capa mole safado, mas pertencente a uma coleção bacana de pockets, como não existem aqui.
O autor colombiano se chama Hector Abade Faciolince e dedica o livro a suas cinco irmãs. É uma coisa fofa, com receitas de mentirinha e uma boa dose de melancolia. Claro, a linha fina é Repentinos antídotos para la pertinaz melancolia.
Nunca pensei que fosse ficar assim. Não tem nada a ver com depressão. É só uma tristeza muito funda, que eu não sabia que existia, mas estava lá o tempo todo. Procurando o nome do autor, encontrei um blog que tem exatamente o nome do livro, em português. É um blog de receitas e a autora parece saber bem do que estou falando.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Ai de nós, balzaquianas

Querida Raquel,
Assisti o filme "As Aventuras de Azur e Asmar", de Michel Ocelet, como você me recomendou. Realmente é maravilhoso. As animações são lindas, as cores são únicas. Lindo de morrer.
Mas você sabe que meus pensamentos vagam por caminhos tortuosos. A moral da história, para mim, é mais prosaica, passa ao largo dos profundos problemas raciais da humanidade. Quando o filme acabou só consegui pensar que, depois de uma certa idade, podemos ser super lindas e poderosas, mas para nós só sobra o Crapoux.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Mão na massa

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. Uma das melhores coisas a se fazer nesses dias é cozinhar coisas bem complicadas. No domingo, fiz gnocchi. Um atrevimento. Por isso é que fiz sozinha, pra mim, sem alarde. Depois que minha avó adoeceu, ninguém mais se tomou dessa ousadia. Foi com um misto de medo e rebeldia que procurei a receita na Internet. Mais rebelde fui ao trocar as batatas por mandioquinhas.
Encontrei a de uma banqueteira famosa, confiável. Descasquei as mandioquinhas. Botei para cozinhar. Bati no processador. Passei para uma vasilha e começou então a parte difícil, que é dar ponto na massa. Pouca farinha, não dá para enrolar. Com muita a massa fica dura, pesada. Amassei, amassei. Não fiquei muito confiante, mas arrisquei.
Fiz os rolinhos, fui cortando. Essa é a parte terapêutica, mas exige um pouco de prática. É como brincar de massinha, mas depois de anos sem a prática os rolinhos ficam achatados, feinhos. Cozinhei aos poucos, como manda a receita e não como fazia minha avó, que era bem experiente mas um tanto imprudente. Tudo com ela era rápido, nunca perfeito. Delicioso, nunca lindo.
Ficou bom. À noite me enchi de coragem e levei para duas amigas experimentarem. Elas aprovaram. Mas ainda não é o gnocchi da minha avó. Quando a batata conspirava a favor, eles quase saíam voando da vasilha de tão levinhos... Um dia eu chego lá.

Pobres príncipes

Lulu está convencida de que a culpa de toda a nossa agonia é dos contos de fadas. As mulheres foram criadas para esperar o princípe encantado. Se ele não vem, ficamos frustradas. Mas afinal o que de tão especial têm esses princípes? A gente só ouviu dizer que eles foram lá, salvaram as moçoilas e daí os dois viveram felizes para sempre. Como era essa felicidade, ninguém contou.
Se a gente reparar bem, esses princípes são bem meia-boca. Nem seus nomes a gente sabe... Estava aqui tentando me lembrar. Como chama o príncipe da Branca de Neve? E o da Cinderela? E o da Bela Adormecida? Nenhum deles tem nome. São todos uma massa amorfa, sem nenhuma personalidade. Quando têm algum diferencial, como a Fera, é porque foram vítimas de um feitiço e quando são desenfeitiçados viram o mesmo príncipe sem graça... É verdade, Lulu. Temos que começar a preparar as novas gerações de mulheres. Mas o que é que a gente vai dizer?

terça-feira, 10 de julho de 2007

Eu explico

Não, não fui eu que inventei essa idéia de mundo líquido que está no título do blog. E também não estou me referindo à Terra, planeta água, da música do Guilherme Arantes. É o filósofo polonês Zygmunt Baumann que assim descreve o momento em que estamos vivendo. Ele acredita que pós-modernidade é um nome muito básico (quase preguiçoso, certamente provisório), que não diz muita coisa.
Então usou esse termo, líquido, no sentido de fluidez, principalmente no que se refere aos relacionamentos humanos. Tudo passa, as pessoas passam pela vida das outras, os casamentos passam. Tudo é pautado pelo consumo e por isso logo nos cansamos das pessoas e partimos para outra, outras.
Nada cria raízes, tudo vai ao sabor da maré. E eu, que não tenho nada de água no meu mapa, fico à deriva, engolindo água, tentando me manter na superfície e torcendo pra aparecer uma ilhota ou pra um vento me levar pelos ares.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Escravos da alegria

Tinha essa música, cantada pelo Toquinho, em que ele dizia que andava escravo da alegria e que, naquela época, isso não era normal. Claro, devia ser época da ditadura, era até indecente ficar tão alegre, mesmo apaixonado. Mas hoje ficou vergonhoso sentir tristeza. Só quem é paciente psiquiátrico e toma tarja preta tem o direito de andar triste e cabisbaixo. O resto da população não pode. Tem que pular carnaval, gargalhar no boteco tomando cerveja até de manhã, tomar ecstasy e virar gasparzinho. E o pior é que exportamos essa imagem para o mundo.
Chego em Buenos Aires, é janeiro, e a gringolândia só quer saber onde vou passar o carnaval. Em casa, criatura, em São Paulo, no cinema, feliz da vida, cidade vazia. No máximo pegando uma piscininha no sítio, tomando um solzinho de leve. Ninguém acredita. Mas você não é brasileira? Sim, e daí? Já pulei carnaval, já até gostei de axé, mas perdi a vontade depois que isso virou obrigatório. Explico pro gringo, que é inglês mas dá aula de literatura na Coréia e não cabe em si de contentamento de estar indo passar o Carnaval no Rio (ou na Bahia, enfim...): "Carnival is the dictatorship of happiness, you know? It's too much happiness for me". Ele não se faz de rogado: "Well, I call handle..." Aproveita, gringo, aproveita que nessa terra gente de fora sempre foi melhor tratado do que os nativos.

Detalhes tão pequenos

– Não, não é assim que funciona. Não consigo olhar para alguém e dizer, ah, vou paquerar esse aí. Não dá, se eu não conversar não rola.
E às vezes, no meio da conversa, eu reparo que ele tem um dente torto. Ou uma cicatriz. Ou uma sobrancelha mais levantada do que a outra. Aí eu fico adorando aquilo, aquele detalhe. E depois de muito tempo, quando tudo acabou, é só lembrar desse defeitinho que tudo volta.

O post é a nova faixa

Pede-se que a mulher que segunda-feira última, às sete horas da noite, ao passar diante da floricultura do número X da rue Tronchet, voltou-se para olhar o homem que estava diante da porta, apresente-se.

Marguerite Duras se lembrou desse anúncio classificado de jornal em um texto publicado na Cahiers du Cinema (e republicado no Brasil num livro chamado Os Olhos Verdes). Lembrou do anúncio para contar que uma vez um filme seu estava em cartaz e uma mulher passou em frente ao cinema e disse ao marido que queria ficar. Duras ficou com vontade de publicar um anúncio e encontrar essa mulher, saber o que ela tinha achado do filme, já que entrou tão inadvertidamente.
Quando eu era adolescente não tinha blog nem celular e tinha gente que mandava fazer uma faixa e pregar na rua, e ficava esperando a resposta do grande amor perdido. Hoje só fazem isso pra cachorro. Só tive vontade de fazer isso uma vez, depois do show do The Cure. Queria achar o estudante de administração que me beijou. Inda bem que não paguei esse mico. Já disse, eu temo o ridículo.

Breu, barrilha e parafina

As fichas dos clientes ficavam arrumadinhas no fichário, preenchidas com aquela letra linda, rebuscada, calcada forte, de se ver do outro lado. Breu, barrilha, parafina e um monte de outros produtos químicos. Meu avô, com seus óculos fundo-de-garrafa, de aros grossos, atendia ao telefone dizendo "Alão". Telefone preto, número de seis dígitos. Todo dia no telefone, comprando, vendendo. Só no sábado não tinha breu, barrilha e parafina. Dia de feira, tinha pastel de carne e suco de revolvinho.

Só eu me lembro

Mais uma revista querendo salvar o Brasil. Foi só começar a ler e veio de novo aquele dèja-vu. Revistas novas de patotas velhas. Pensei logo, será que essas pessoas não têm assunto? Não tem amigos?
Pouca gente tem amigos como a Raquel. Com ela eu não só converso. Eu até jogo videogame. Eu vejo coisas. Saturno, por exemplo, foi ela que me mostrou. Ela me fala sobre a filosofia sufi, com muito cuidado pra não me assustar. E eu conto histórias intermináveis de pessoas novas e de outras, que só eu me lembro. Só no quintal da casa dela tem planetas e estrelas. Lá também tem uma esteira de frente pra lua, onde toda conversa é nova.

De pai para filha

– Eu não tenho blog porque não gosto de me expor.
- Ah, vá. Eu não tenho nada a esconder.
- E eu não tenho nada a dizer.
Meu pai é que nos ensinou assim, que passar ridículo é a pior coisa que pode acontecer. Nunca vi alguém com mais medo do ridículo do que meu pai. Quando estava na escola, a professora o obrigada a solfejar. Os colegas tinham todos de sair da classe, senão ele não cantava.